Monday, March 30, 2009

A Província de 1858

Durante meses, no decurso de dois anos, tive de vagar pelos distritos centrais e setentrionais do reino. Pude então observar amplamente quantas misérias, quanto abandono, quantos vexames pesam sobre os habitantes das províncias, principalmente dos distritos rurais, como o vosso, que constituem a grande maioria do país. Vi com dor e tristeza definhados e moribundos os restos das instituições municipais que o absolutismo nos deixara: vi com indignação essas solenes mentiras a que impiamente chamamos instrução primária e educação religiosa: vi a agricultura, a verdadeira indústria de Portugal, lidando inutilmente por desenvolver-se no meio da insuficiência dos seus recursos; vi, em resultado dos erros económicos que pululavam na nossa legislação, a má organização da propriedade territorial e a desigualdade espantosa na distribuição das populações rurais, precedida da mesma origem, e dando-nos ao sul do reino uma imagem das solidões sertanejas da América, e ao norte uma Irlanda em perspectiva: vi a injusta repartição e a pior aplicação dos tributos e encargos: vi a falta de segurança pessoal e real, especialmente nos campos, onde o homem é obrigado a confiar só em si e em Deus para obter: vi um sistema administrativo mau por si e péssimo em relação a Portugal, com uma hierarquia de funcionários e uma distribuição de funções que tornam remotas, complicadas, gravosas, e até impossíveis, a administração e a justiça para as classes populares, e incómodas e espoliadoras para as altas classes: vi, sobretudo, a falta da vida pública, a concentração do homem na vida individual e de família, que é ao mesmo tempo causa e efeito da decadência dos povos que se dizem livres: vi todos esperarem e temerem tudo do governo central; confiarem nele, como se fosse a Providência; maldizerem-no, como se fosse o princípio mau: ideias completamente falsas, posto que bem desculpáveis num país de centralização; ideias que significam uma abdicação tremenda da consciência de cidadão, e da actividade humana, e que são o sintoma infalível de que os males públicos procedem, não da vontade deste ou daquele indivíduo, da índole particular desta ou daquela instituição, mas sim do estado moral da sociedade e da índole em geral da sua organização.

Alexandre Herculano, Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra, Jornal do Commercio, Lisboa, 1858. Tirado daqui.

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