Estive a divertir-me a comentar um post sobre uma possível privatização do SNS no Esfera no Horizonte.
Aqui fica o meu comentário para quem tiver paciência de ler até fim:
Caro Pedro,
isto vai aqui uma salganhada… começando pelo início:
o SNS não é um monopólio, nem deve estar sujeito à teoria dos mercados. Como podes facilmente verificar, o SNS foi criado de modo a assegurar o direito à saúde (promoção, prevenção e vigilância) a todos os cidadãos. O direito à saúde é um direito que não estará garantido caso a prestação de cuidados de saúde estivesse totalmente entregue às mãos de privados.
Um sistema privado de saúde tem de ter como objectivo o lucro, pois de outra forma não é sustentável. Bom… há outra forma que é ser subsidiado. Hmmm… É por isso que os Estados, nomeadamente o Português, garante aos seus cidadãos esse mesmo serviço, pois considera-se o seu acesso um direito fundamental.
Diz-nos o art 2º, cap I, do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde:“O SNS tem como objectivo a efectivação, por parte do Estado, da responsabilidade que lhe cabe na protecção da saúde individual e colectiva.”
Como estudas Direito deves perceber + deste paleio do que eu - em todo o caso podes pedir ao Vital Moreira para te dar umas explicações…
Como é evidente, não há sistemas perfeitos, o Estado é ineficiente, burocrático, uma chatice. Por isso é que temos problemas de todos os tipos, de meios, de condições, de médicos, enfermeiros, técnicos, etc. Mas em todo o caso, qualquer pessoa sabe que independentemente das falhas do serviço público, esse serviço ser-lhe-á prestado, por um custo reduzido.
Como cidadãos e contribuintes é esse o contrato social que fazemos com o Estado - nós vamos aguentando a máquina com os nossos impostos, para quando chegar o dia em que precisarmos de ajuda, ela não nos falte. O mesmo se passa com a justiça, segurança social, administração do território, etc etc.
Falar de “livre concorrência e competitividade no sistema público de saúde” é um conceito que faz muito pouco sentido nestas premissas. O SNS não existe para concorrer com ninguém. Existe para prestar um serviço público. É mesma coisa que dizer que as polícias não permitem às empresas de segurança um mercado livre e competitivo…
Há um problema de despesa, pois há. Esse é um problema iminentemente político. Temos de fazer opções: ou optamos por manter este sistema público, que garante a todos os cidadãos, sem excepções nem complicações, os cuidados de saúde, com os nossos impostos, ou então optamos por privatizar ou fechar o SNS, e assim teremos um Ministro das Finanças muito feliz, mas um País com graves problemas de desigualdade no acesso ao saúde.
Isto é muito importante. É que não estamos a falar de telefones e telemóveis. Ou de produção eléctrica (embora aqui tb houvesse mto para dizer…). Estamos a falar da saúde das pessoas.
Filas de espera? É um problema grave. Mas não insolúvel. É possível melhorar o SNS - muito. Basta observar as melhoras práticas públicas noutros países - Alemanha, Escandinávia etc. São necessário reformas. Mas não só na saúde, em diversas áreas. A inefiência dos nossos serviços públicos não é endémica. Façam-se reformas e vejam-se os resultados.
(já agora, espero que essa do governante turco tenha sido uma piada, pq senão inventaste um novo facto científico: a gripe aviária poder ser transmitida por uma ave morta e cozinhada…)
Concretamente ao que propões, que dou o desconto dos devaneios da idade tenra, julgo que já dei uma resposta. O SNS não se pode entender como uma sistema monopolístico, pois presta um serviço público universal, nem serve para fazer concorrência aos privados. Os privados podem ou não fazer concorrência com o Estado ou entre si, mas isso é problema deles. Creio no entanto, que há de facto necessidade de redesenhar o conjunto de infraestruturas do Estado. Fechar aquelas cujo custo é demasiado superior ao seu benefício social, centralizar regionalmente recursos, aumentar a produtividade, etc. Era o que este Governo estava a tentar fazer, e que ainda faz, embora + timidamente. Politics sucks, c’est la vie…
No resto vamos então uma a uma:
“O lucro resultante (da privatização) seria votado à constituição dum fundo com fins solidários”.
Sim senhor… e então de onde vem a remuneração do capital accionista das empresas privadas?
“para ajudar a financiar os seguros de saúde dos mais pobres ou dos recusados pelas seguradoras”
Portanto privatiza-se um serviço público para acabar com a despesa, para passarmos a um sistema privado subsidiado. Hmmm… interessante. Mas ao menos aqui algo bem dito - as seguradoras, como empresas privadas cujo objectivo tb é o lucro, nesse sistema recusam financiar muitas pessoas. Pois é…
“redução emergente de gastos teria de corresponder um abaixamento fiscal no rendimento das famílias”
Esta é uma clara opção política que porventura cava um dos maiores fossos entre Esquerda e Direita. Eu convictamente defendo que uma % justa dos nossos impostos seja utilizada para financiar o sistema público de saúde - sendo que se deve empregar esse dinheiro da forma + eficiente possível. Pelos motivos já enunciados atrás.
“O Estado poderia até manter o direito constitucional à universalidade da prestação de cuidados de saúde, impondo aos cidadãos o dever de contrair seguro de saúde ou de pagar o correspondente a um seguro-base detido pelo Estado (ou concessionários), e financiando, total ou parcialmente, o seguro dos menores e dos que comprovassem não ter meios para contrair um seguro (com recurso ao tal fundo solidário).”
Ora bem… como é que se garante a universalidade do serviço sem um sistema público? Não há sustentação empírica para essa afirmação. O “dever” de contrair seguro? Não queres antes dizer a obrigação de pagar a uma empresa privada por algo que anteriormente pagava ao Estado…? Ainda para mais sem a garantia que o capital que estou a investir no seguro tenha retorno - o objectivo da seguradora continua a ser o lucro,e pode considerar os tratamentos que eu necessito para um cancro despesas injustificáveis… pelas tuas soluções apresentadas o Estado é que se tinha de chegar à frente… Hmmm… again.
Isto é pescadinha de rabo na boca. Um pouco como a actual situação dos bancos. Ora as administrações dos bancos exigem que o Estado ajudem a abater os activos tóxicos, entrando com capital, mas sem mexer na sua estrutura accionista. Nacionalizar prejuízos, privatizar lucros. É um contrato que não beneficia o contribuinte e cidadão. O mesmo se passaria com a saúde. Ou seja, optamos por privatizar um serviço, por convicção de que nas mãos dos privados tudo irá funcionar melhor, mas a única forma de tentar resolver (sem garantia) os problemas que eventualmente vão surgir é o Estado se chegar à frente com o dinheiro dos… contribuintes. Pagamos aos privados para nos prestarem um serviço - e pagamos ao Estado para ajudar os privados a nos prestar o serviço. Ahhh… pure poetry.
Outro debate interessante é o da segurança social. Que o PSD não há mto tempo queria privatizar pq considerava que era única forma de o sistema ser sustentável a longo prazo. A crise dos mercados financeiros julgo ter ensinado uma lição a essa gente.
Ora, se privatizássemos o SNS - empresas privadas, capital privado, mercados de capitais… ring a bell…?
Um abraço - e não leves a mal. It’s just politics ;)
Iglésias
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